A TORRE DE BABEL
E OS FRUTOS DA TERRA
Há tempos que eu não me chocava tanto diante do talento incomensurável de um artista quanto ando fazendo diante dos quadros de Pieter Bruegel, “o Velho” (“The Elder”). Uma de suas mais impressionantes criações retrata o mito judaico-cristão da Torre de Babel com uma tridimensionalidade tão perfeita, uma beleza arquitetônica tão estarrecedora, que os olhos ficam encantados de “passear” o olhar pela tela. Mas o que mais me impressiona é o caráter arruinado e caótico da construção que o quadro traz como protagonista, numa perfeita comunicação do fracasso e do desastre deste mítico empreendimento humano.
A Torre de Babel simboliza pra mim muitas coisas além do significado mais “escancarado” que é a discórdia entre os homens, a divisão que ocorre entre eles por causa da diferença de línguas e costumes. É, além disso, o símbolo de uma tentativa humana que fracassou, de um sonho que gorou, de uma esperança que se decepcionou…
Conta-nos o mito de Babel que tentaram os homens erguer uma suntuosa construção que os aproximasse de uma certa divindade que supunham habitar nas regiões celestes. Na versão oficial, com a qual catequisam as criancinhas e que os pregadores propagam de seus púlpitos, foi Jeová quem impediu que o projeto chegasse a bom-termo. Irritado com os homens por quererem estreitar as distâncias entre o sagrado e o humano, este deus teria confundido os idiomas, impossibilitando a comunicação entre os homens, agindo de modo a manter a hierarquia que estabelece um fosso entre o cá-embaixo e o lá-em-cima, entre os reles mortais e o soberano dos céus.
Eis um mito de um deus abscôndio, anti-social, que não quer papo com suas criaturas e deseja se manter como um inacessível e distante juiz das virtudes e pecados de seus rebentos, julgando-os com olhar severo e às vezes punindo-os com hecatombes, bolas-de-fogo e condenações à danação eterna. Desta matéria são feitos os delírios humanos derramados nos livros e nos mitos ditos “sagrados”….
O que mais me interessa no mito é que os homens, neste empreendimento coletivo alucinado de tentar atingir um “contato com a divindade”, não atingiram seu objetivo: não chegaram à Harmonia ou à Comunhão, mas sim à Discórdia e à Calamidade. Por mais alto que se erguesse a torre, nenhuma altura parecia ser jamais suficiente: subiam e subiam, e não trombavam com nada além de vento, atmosfera, vazio. Nenhum deus foi encontrado nesta marcha para cima de uma humanidade ávida por contatos sobrenaturais.
A Torre de Babel não tem um final feliz para as esperanças daqueles que empreenderam a construção: é muito mais um mito que desilude, desengana e põe a fé em maus lençóis. Naquele “experimento empírico” de subir rumo ao divino, a humanidade descobriu-se insatisfeita em seu anseio e, nas palavras de John Lennon, descobrimos “above us only sky”. Ou, nas palavras do astronauta russo Yuri Gagárin, ao chegar ao espaço sideral: “Não vejo deus nenhum aqui em cima…”.
A Torre de Babel mostra o ímpeto religioso levando-nos a empreendimentos absurdos, a imensos desperdícios de energia, em busca de um Papai-do-Céu que fantasiávamos que estava sentado nas nuvens, nos julgando e nos cuidando. Como depois comprovaríamos novamente com nossos aviões e foguetes, o Céu não tem nada de Paraíso: não passa de ar atravessável, espaço vazio, quietude a-linguística, presença muda do que não está aí para satisfazer nossos corações…
Os gregos, com o mito de Ícaro, representaram algo semelhante: o ímpeto alucinado de transcender os limites humanos, que leva Ícaro a tentar alçar vôo rumo ao Sol, acaba sendo severamente punido pelo derretimento de suas asas e sua queda abismal. De certo modo, um dos temas mais recorrentes da mitologia grega, a batalha entre Diké (Justiça) e Húbris (Desmesura), encontra-se também em Ícaro. Ele foi desmesurado em sua ambição de atingir um fim inacessível aos humanos (acercar-se do Sol, abraçar os astros distantes…). Acabou pagando o preço por sua tentativa fracassada de ascender a domínios que não são os seus.
Pode-se ver no quadro de Bruegel o tamanho diminuto da cidade diante deste colosso de pedra que é a Torre de Babel, toda incompleta e imperfeita, imagem e semelhança de seus mortais artesãos. Pequenos como formigas, os trabalhadores da construção, esparramados por todos os lados, não tem a mínima visão de conjunto: é o pintor que a detêm e que põe sua perspectiva privilegiada a serviço de quem se depara com o quadro. Este quadro possibilita a quem o observa ter sua consciência imediatamente amplificada a dimensões amplíssimas. Percebam que o topo da Torre penetra nas nuvens, bem mais envolto em névoa do que os andares inferiores; no entanto, é perto do topo que a feiúra e a incompletude parecem se manifestar com mais força. Quão eloquente!
Ao rés-do-chão, súditos de joelhos se submetem em silêncio a um nobre com cetro de ouro, acompanhado por um séquito de soldados com espadas afiadas. Se fôssemos Brechtianos e perguntássemos a opinião daqueles trabalhadores sobre a construção em que estão obrigados a trabalhar, talvez muitos expressassem sua discórdia em relação ao projeto, julgando-o absurdo, ineficaz ou mesmo terrivelmente e opressor. É bom lembrar que muitos daqueles que foram obrigados a trabalhar na construção da torre, de modo similar aos escravos que penavam para erguer as pirâmides para os faraós egípcios, foram coagidos pelos poderosos-da-vez a este extenuante labor. Pobres de todos aqueles, História afora, que foram escravizados por homens com a idéia-fixa, maníaca e mirabolante, de “ganhar o Paraíso” ou “subir até Deus” (anseios que, julgo eu, cada dia mais serão tidos como material de reflexão mais para a psiquiatria do que para a teologia…).
Hoje, os arranha-céus que, no mundo capitalista desenvolvido, enxameiam nas metrópoles, e através dos quais algumas empresas e alguns milionários parecem envoltos numa trama sinistra de competitividade babélica, parecem ter esquecido a lição original da Torre, tão magistralmente pintada por Bruegel: não há Deus algum a se encontrar em Cucolândia das Nuvens. E só há hedionda opressão no fato de escravizar milhões a projetos faraônicos de poder teológico-político.
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O filme O Moinho e a Cruz foca sua atenção sobre outro quadro impactante e magistral de Bruegel, O Caminho da Calvário. Similar a outro excelente filme dedicado a um grande pintor – Sombras de Goya, de Milos Forman – O Moinho e a Cruz se passa também em um período histórico ainda chafurdado na medievalidade e assombrado pelos morticínios em massa ordenados pela Santa Inquisição, o braço armado da Igreja Católica.
A Inquisição, como todos sabem, era responsável pelo assassinato de pessoas tidas como hereges, descrentes, desviantes, feiticeiras, bruxas, pagãos. Foi um holocausto de milhões que foram acusados de crer nos deuses errados. Queimadas vivas eram as mulheres que preferiam louvar Dionísio a Javeh; aqueles que usassem ervas da mata e cogumelos mágicos em rituais eram decerto merecedores do suplício da roda; sequer supor a inexistência do deus que as autoridades doutorais da Igreja pregavam em seus sermões era o bastante para que a alma do incrédulo fosse prometida ao inferno, que seu caráter fosse declarado malévolo e que toda a violência contra o seu corpo estivesse justificada.
No filme, Bruegel (encarnado por Rutger Hauer, em um de seus melhores papéis desde Blade Runner – Caçador de Andróides) é honrado com uma descrição cinematográfica de seus métodos de trabalho que atinge alturas poéticas de inebriar. Como uma “aranha que constrói sua teia”, ele pretende “capturar” em sua obra toda a riqueza de diversidade humana que enxerga à sua volta. O quadro é pensado como uma representação de um momento da História Humana onde os mais lúcidos dentre os espectadores desejavam fazer parar o moinho do Tempo para que se pudessem consertar os males do mundo.
Pois os males são tão difíceis de remediar e curar justamente pois não cessam de modificar-se, são também eles fluidos e variáveis. O Tempo não pára e é no seio dele que devemos nos aplicar a remediar e vencer aos males que devêm. Cronos em sua fome insaciável não cessa um segundo sequer de mastigar seus filhos: nós, as devoradas criaturas do tempo. E males não faltam na obra de Bruegel e no filme dedicado a nos fazer mergulhar em seu mundo.
Os horrores vivenciados pelas massas daquela época foram espetacularmente retratados por este artista, tão imensamente talentoso que legou à posteridade retratos tão vivazes da desgraça de seu tempo: uma das personagens principais de O Caminho do Calvário é a mãe do condenado, uma velha senhora, com feições de Virgem Maria, mas que é apresentada já na velhice, ferida pelo fardo de uma experiência demasiado incompreensível e dolorosa. Esta figura se assemelha a Maria, mãe de Jesus, mas pintada cerca de 30 anos depois do assassinato de Cristo. Aquela mulher é uma das mais fortes representações de uma fraqueza absolutamente impotente, de uma tristeza profunda diante do rolo compressor das autoridades que estão executando seu filho.
Por que ele está sendo morto, este supliciado de um novo Gólgota? Principalmente pois os rigores dos tiranos da Espanha, nesta época, haviam convertido em rotina o assassinato sistemático de todos aqueles que não considerassem “bons cristãos”. Aqueles que se auto-proclamaram bons cristãos e defensores da verdade absoluta perseguiam, nestes tempos, uma seita que havia nascido no próprio seio do Cristianismo e que havia progressivamente se distinguido dele: a Reforma Protestante de Lutero já agia sobre o ar dos tempos e os defensores da nova seita já eram perseguidos pelos defensores dogmáticos das tradições antigas.
Há em Bruegel muito do zeitgeist que conduziu a horrores como o Massacre da Noite de São Bartolomeu, quando 30.000 huguenotes foram assassinados nas ruas de Paris a mando dos reis católicos, desejosos de calar a voz dos asseclas de Lutero e Calvino pelo método mais bruto conhecido: cortando-lhes as gargantas. Não é o próprio Sermão da Montanha que enuncia: “Se teu olho te escandaliza, arranca-o”?
Esta medicina grotesca, que equivale a de um médico que, para a enxaqueca de seu paciente, receitasse que ele cortasse fora a cabeça, ou de um dentista que só lidasse com cáries através da extração dos dentes, foi posta em prática também pelos piedosos defensores das “verdades sagradas” em relação aos considerados “males da alma”, também conhecidos, na linguagem dos teólogos, como “vícios” e “pecados”.
Aquilo que a Igreja Católica Apostólica Romana define como “pecado”, porém, não é assim compreendido por aqueles que são rotulados de fora como pecadores: quem louva Baco e Pã, cantando pelado pelos bosques, embriagando-se de vinhos e cogumelos, não necessariamente considera-se alguém que merece ser queimado vivo por estar ferindo um dogma eclesiástico ao qual aderem alguns monarcas supersticiosos e seu clero privilegiado…
Um quadro de Bruegel, quando compreendemos o que está por trás daquela imagem, quando conseguimos usar o quadro como uma espécie de janela que podemos atravessar rumo a um outro período histórico, tem a força e o impacto que a leitura de Voltaire ou Michelet oferece ao leitor que se aventura pelos sinistros labirintos da medievalidade.
Ao mesmo tempo, já se respira com mais liberdade em Bruegel o aroma liberador do Renascimento. Estes quadros nos ensinam também sobre o porquê da Revolução Francesa, ou melhor, nos ajudam a compreendem o que a tornou necessária. Era inevitável uma maré da revolta contra os horrores perpetrados num mundo onde vigia o dogma do Direito Divino dos Reis e onde eram correntes as carnificinas sectárias, ordenadas por certas facções religiosas contra inimigos de outras facções (e que conduziram a ciclos intermináveis de violências). Tudo isso já carrega em germe a indignação que daí brotou, a maré de oposição a este mundo babélico.
O Moinho e a Cruz é um dos melhores filmes que já vi sobre as artes plásticas: consegue a proeza de, partindo de um quadro específico, lançar o espectador para uma História repleta de horrores e de ensinamentos. A certo momento, Bruegel assim explica o significado do Moinho que ocupa a posição mais alta do quadro, envolto nas nuvens como o topo da Torre de Babel: “quase todas as representações de Deus o mostram acima das nuvens, olhando para baixo em direção à Terra com expressão de desgosto e desagrado”.
Todos aqueles que cresceram sob a influência da doutrinação religiosa judaico-cristã conhecem esta figura de uma divindade furibunda, irascível, juiz inexorável dos pecadores, que inclusive inventou o Inferno para torturar pelas eternidades os seus desafetos. Deus é representado como uma figura que expulsa o desobediente às regras, por mais absurdas que as regras sejam. Afinal de contas, Adão e Eva deveriam por acaso obedecer à regra de manterem-se ignorantes? Porque uma Árvore onde se come Conhecimento seria proibida senão por aqueles que reinam através da Ignorância?
Deus é representado como capaz de genocídios, como os de Sodoma e Gomorra, nos quais se mostrou especialmente homofóbico e genocida. Enfim: acreditam os crentes no monoteísmo que acima das nuvens haveria um Todo Poderoso capaz de fúria e vingança, que observa todos os atos e pensamentos dos homens, julgando-os moralmente para decidir se lhes dá a Beatitude Eterna ou o Suplício Infindo? Bruegel nos pinta este mundo com a voz discordante de quem sabe que tais fés não conduziram, no palco da História, à concórdia universal. É um pintor da luta fratricida e sectária, um retratador de horrores reais, ao invés de um propagandista ou marqueteiro de uma rósea fantasia de Redenção.
Tanto o Moinho no cimo da montanha quanto o topo da Torre de Babel roçam as nuvens mas só encontram ali a solidão.
É debaixo de um céu indiferente, todo éter e espaço transitável, que os seres na Terra penam, lutam, nascem, vivem, morrem. Da antiquíssima e lendária construção da torre que subia aos céus na Babilônia, aos atuais experimentos com arranha-céus, satélites e foguetes, a recorrente descoberta da Humanidade é a da ausência de qualquer Providência Benigna nas nuvens.
Dizem que o ateísmo não é comprovável, mas tenho minhas dúvidas: são milênios de experimentos empíricos feitos para tentar contatar um deus que permaneceu eternamente silente. E silêncio eterno é algo típico dos mortos, ou melhor, dos que não existem.
Talvez haja um deus nos confins do Universo, em alguma galáxia distante, preocupado em gerir a órbita de planetas e a incandescência de sóis de que nem temos ideia? Isso o mistério recobre. Mas o que já descobrimos é que nossos arredores galácticos estão desabitados por ETs e deuses. Apesar de só podermos dizer que não há vivalma nesta minúscula fração das redondezas galácticas que pudemos explorar deste Universo do qual desconhecemos ainda tanto…
Joseph Campbell, em O Poder do Mito, descreve dois modos opostos de se imaginar o início da aventura humana sobre a Terra: 1º) a ideia de que “caímos do céu”, tendo sido jogados aqui de uma “fonte” no alto; ou seja, uma Mão nas Nuvens nos confeccionou e depois nos fez descender ao rés-do-chão terrestre; 2º) a ideia de que emergimos do próprio seio do planeta, filhos de Mãe Gaia, rebentos da Natura Creatrix; o que eu gosto de chamar, usando uma expressão de André Gide, de teoria dos “Frutos da Terra”.
Que a primeira dessas ideias não nos tenha conduzido à concórdia e à harmonia é o que a História oferece provas em profusão. Que a segunda ideia tenha um poder maior de concretizar a fraternização, ainda resta a ser experimentado, tentado, avaliado, mas me parece muito plausível. Venceríamos o tenebroso colosso da Discórdia caso pudéssemos cessar de construir a Torre de Babel rumo a deuses que não existem e enfim nos compreendêssemos como Frutos da Terra, Filhos de Gaia, fios na grande teia terráquea em que a vida tece seu drama?
Bruegel
Publicado em: 22/05/15
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
Inquietantemente maravilhoso, as obras e o texto!
Valeu, “man”!
Inquietar-se é viver!
E foi do assombro, dizem, que nasceu a filosofia…
Volte sempre 🙂
Sobre seu “Tolstói & Nietzsche”
Não vi em nenhum momento de sua parte, alguma afirmação por méritos próprios, apenas as afirmações baseadas nas de Chestov.
Eita preguiça intelectual.
Uns dizem que roubar é imoral e antiético, outros dizem que roubar é mais apenas um dos jeitinhos brasileiro de sobreviver, quem está errado?.
Assim foi Tolstoi e Nietzsche, Tolstoi se enquadra no primeiro caso e Nietzsche no segundo. O final de vida de cada um diz por sí só quem viveu uma vida mais sensata.
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
A man
Comentou em 07/07/13